José Francisco David-Ferreira (1929-2012) Um cientista português no século XX

Nº 1739 - Verão 2017
Publicado em Memória por: Tiago Brandao (autor)

José Francisco David-Ferreira nasceu em Montargil, a 26 de Fevereiro de 1929, onde a falta de condições e circunstâncias diversas levaram José Francisco do Alentejo profundo para Lisboa, vindo aí a ter possibilidades de se dedicar aos estudos.

Crescendo na cidade lisboeta dos anos 1940, despertou-se-lhe uma consciência, política e humana: as tertúlias de café, as leituras clandestinas, as pequenas conspirações e a revolta ‘latente’ de uma geração também contribuíram para traçar um caminho. Viveu o MUD Juvenil, por exemplo, conforme o saudoso oceanógrafo e antifascista português, Mário Ruivo (1927-2017) testemunhou...

“(...) constitui[-se] uma rede, digamos, em que se procura, no contexto repressivo então da época, dar voz à juventude e com uma preocupação de ser uma voz, como se diz, pluralista, genuína no sentido que era sim, de certos estudantes, gente que vem das universidades (...) que permitisse estar atenta e ser sensível aos problemas que se punham fundamentais de criar um futuro para Portugal, ultrapassando o regime fascista em que estávamos envolvidos e a repressão...” i

O MUD Juvenil era assim uma “organização” que, entre outras ramificações, “abrangia todas as faculdades do ensino”, conforme nos conta a filha de Luís Hernâni Dias Amado (1901-1981), e irmã de Luís Osvaldo Dias Amado, respectivamente professor e amigo de David-Ferreira. Luísa Irene Dias Amado menciona ainda os tempos do MUD Juvenil nas seguintes palavras: “O MUD Juvenil passou-se (...) quando eu cheguei à faculdade, no fim da guerra, portanto eu entrei na faculdade em Outubro de 1945, foi quando se formou, porque o MUD Juvenil é o filho do «MUD», dos senhores nossos pais, era o Movimento de Unidade Democrática que foi proclamado no dia 8 de Outubro de 1945, numa sessão pública e depois nas faculdades... vai-se a pouco e pouco organizando a parte da nossa idade, o movimento, por isso nós somos filhos do MUD...”ii

Desde 1939 José Francisco frequentara, em Lisboa, o Liceu Camões, tendo terminado o curso liceal em 1946. Recorda em particular o professor Rómulo de Carvalho (1906-1997) pelo muito que aprendeu nas suas lições e nas leituras extraprograma que este Professor recomendava: “Antes de entrar na Faculdade Médica, na Escola Médica, como ainda muitos lhe chamavam, eu tinha frequentado o Liceu Camões e o acaso das pautas e da distribuição por turmas tinha-me proporcionado um Professor: o Doutor Rómulo de Carvalho. O nosso poeta bem vivo, António Gedeão. Foram as suas aulas de física e as leituras extra-curriculares que recomendava que despertaram em mim, como em muitos dos seus alunos o primeiro interesse pelas coisas da Ciência. Ele foi desde então um primeiro marco de qualidade.” iii

Eram os primeiros passos da sua iniciação científica, que prosseguiria no curso preparatório da Faculdade de Ciências, antecâmara de entrada na Faculdade de Medicina, onde teve outro grande professor: o físico Manuel Valadares (1904-1982). Nos preparatórios para Medicina, aconteceu ainda ter como colega e amigo Luís Osvaldo Dias Amado. Foi a oportunidade de vir a conhecer de perto o pai: O professor Dias Amado, então um prestigiado assistente da Faculdade de Medicina, de Lisboa, também um discípulo de Celestino da Costa.

Dias Amado já não viria a ser seu professor, porque fora afastado definitivamente da Universidade, por esse processo expedito que na época não se chamava “saneamento”, como mais tarde – era antes as célebres depurações políticas do regime salazarista. Contudo, as primeiras lições de microscopia e de histologia recebeu-as, quase clandestinamente, no laboratório particular do Professor Dias Amado, na Rua Castilho, na sequência do seu afastamento compulsivo da Faculdade de Medicina. Foi aliás esta experiencia que lhe abriu as portas do Instituto de Histologia de Augusto Celestino da Costa (1884-1956).

Inserido no IHE – Instituto de Histologia e Embriologia da Faculdade de Medicina de Lisboa (FMUL), David-Ferreira era um jovem e promissor investigador, que logo começou a ser incentivado pelos seus tutores. Assim, uma orientação oportuna do Professor Xavier Morato – este sim, um “saneado” de Abril –, que era então Director do Instituto, e uma bolsa do Governo Francês, detida graças ao interesse e influência do Professor Celestino da Costa – junto do adido cultural da Embaixada de França, Pierre Hourcade –, permitiram-lhe a realização de um estágio no Laboratório de Microscopia Electrónica do Institut de Recherches sur le Câncer em Villejuif, de que era Director o Professor Charles Oberling. Era então um dos melhores Centros de Investigação do País: este departamento em França e o Karolinska Institut em Estocolmo eram então os precursores da utilização científica do Microscópio Electrónico no Ocidente, tendo sido então assim que as oportunidades da carreira de investigação e iniciação científica o levaram a emigrar para França, encorajado pelo velho cientista lisboeta, o Mestre Celestino.

Foi durante essa estadia que David-Ferreira começa a empenhar-se na ideia de montar um dos primeiros laboratórios de microscopia electrónica no País. A introdução da microscopia electrónica em Portugaliv, nos finais da década de 50, foi possível graças à Fundação Calouste Gulbenkian, que financiou a instalação e manutenção no Instituto de Histologia e Embriologia da FMUL do primeiro Laboratório com a capacidade para executar as técnicas de ultramicrotomia. Foi uma das primeiras acções da Fundação na área da Ciência. Uma acção que veio a ser prosseguida alguns anos mais tarde com a instalação de outras unidades de microscopia electrónica nas Universidades do Porto e de Coimbra e, na década de 60, com a criação do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) em Oeiras, que se firmou então como um dos centros de investigação que mais contribuiu para a renovação da Ciência em Portugal.

Não obstante a importância de dispor dos recursos financeiros, a introdução da microscopia electrónica foi também possível por causa do empenho de homens como David-Ferreira. A inserção de David-Ferreira tanto nos circuitos internos como internacionalmente era já nesta altura evidente. Por exemplo, em 1960, fez um extenso périplo internacional, por ocasião da participação na European Regional Conference on Electron Microscopy em Delft e no 10.º Congrès International de Biologie Cellulaire, em Paris, realizou visitas de estudo a vários Laboratórios e Institutos onde colheu vários ensinamentos de organização laboratorial e, em particular, quanto aos parâmetros de rigor e qualidade que deviam orientar uma instituição de pesquisa, ensinamentos que David-Ferreira viria a aplicar mais tarde em Portugal.

Regressado de Paris, David-Ferreira já tinha um trajecto invejável, e deste então o seu trajecto foi marcado pela consolidação de um curriculum de prestígio. Regressado de novo período no exterior, entre 1962 e 1965 nos Estados Unidos, David-Ferreira montou e dirigiu o Laboratório de Biologia Celular do Centro de Biologia da Fundação Calouste Gulbenkian, que rapidamente se tornou uma referência nacional. Data desta altura o momento em que a Fundação Gulbenkian se envolve no apoio à pesquisa científica, apoiando “um conjunto de atividades que marcaram decisivamente a evolução das ciências médicas em Portugal”.v Colaborou então com Flávio de Resende e J. Ribeiro dos Santos (Director do Serviço de Ciência / FCG), F. Peres Gomes, N. Van Uden e H. Menano no lançamento de uma instituição que se pretendia modelar e que sem dúvida contribuiu para o desenvolvimento de vários ramos das ciências biológicas no nosso País.vi

A par, portanto, do desempenho de um papel fundamental na instalação de dois laboratórios de microscopia, um no IHE / FMUL, primeiro, e outro no IGC da Gulbenkian, David-Ferreira, além de se dedicar à investigação científica – no que contou com a colaboração competente e dedicada de Karin L. David-Ferreira, sua esposa –, orientou diversos estagiários, no uso do microscópio electrónico, e colaborou com especialistas de outros ramos no estudo de problemas em que exigiam a utilização da microscopia electrónica. Este foi sem dúvida o seu contributo pessoal, não mensurável mas extraordinário e duradouro para a consolidação das biomédicas em Portugal.

Regresso ao ensino

Após o 25 de Abril, será então convidado para ingressar na Faculdade de Medicina de Lisboa, chegando a professor catedrático em 1979. Era o seu regresso ao ensino, a sua grande vocação, que apenas intermitentemente vinha acompanhando a sua vida de cientista. Nisto David-Ferreira irá empenhar-se, nas décadas seguintes, muito para além da sua jubilação em 1999, promovendo activamente as relações entre a investigação e o ensino universitário até ao fim da sua vida.

Nesta dimensão do seu legado, desempenhou vários cargos superiores na vida e gestão universitária, nomeadamente, David-Ferreira se envolverá com os novos desafios da gestão universitária e científica do Portugal democrático, tendo sido autor de um pensamento relevante que aliava vocação pedagógica e prática científica. O cargo mais prestigiante e influente virá a ser o de Pró-Reitor da Universidade de Lisboa (1997-2002), fazendo parte da equipa do Professor Barata Moura.

É, com efeito, neste lastro da sua vida, pelo menos desde os anos 1980, que se expressará um pensamento de organização da ciência e do ensino superior universitário. Discípulo de Augusto P. Celestino da Costa, poderíamos pensar que o legado de David-Ferreira se remeteria exclusivamente à dimensão científica da sua prática profissional. Todavia, cedo compreendeu que o legado da “geração médica de 1911” teria de ser levado mais a jusante, equilibrando e conciliando a vocação científica com a vocação docente.

Para David-Ferreira, uma coisa era aliás indissociável da outra. O espírito científico teria de brotar no meio académico, não totalmente desvinculado deste, em laboratórios distantes e sumptuosamente dotados. Esses canais de comunicação com a universidade eram fundamentais na sua visão, pois na universidade se recrutariam as vocações. E na universidade, por seu lado, a ciência devia ser tornada acessível, pois a sala de aula também aprenderia com os rigores da prática científica, exposta magistralmente, alimentando a cultura escolar, uma ciência que comporta valores de uma prática, formando os alunos, homens e mulheres nos alvores da vida adulta; era o papel da cultura científica na sua dimensão formativa, transversal, esteio e complemento primordial às visões voluntaristas e de caracter frequentemente tecnocrata.

É partir destes valores que David-Ferreira olhava o sistema científico português, já no último terço do século XX, em pleno regime democrático e sobretudo acompanhando as euforias da adesão à Europa comunitária. Enquanto actor científico relevante, não só no seu meio e em instituições ligadas à medicina e à investigação biomédica em Lisboa, mas em instâncias de política científica, como o INIC – Instituo Nacional de Investigação Científica (e respectivos conselhos consultivos de que fez partevii), sucessor do Instituto de Alta Cultura do Estado Novo e que veio a ser posteriormente extinto (1992), a contragosto de muitos que como David-Ferreira não concordaram com a medida.viii

David-Ferreira viveu e presenciou, por exemplo, o exponencial crescimento dos investimentos do Estado português em Ciência e Tecnologia, na conjuntura da adesão e integração europeia. E a este respeito, só pôde congratular-se por esse novo fôlego que as coisas da ciência (e porventura até mais da tecnologia) ganharam, fenómeno que com humor chamara de o “euromilhões”’ix da ciência portuguesa. Alertava já então, porém, para os “sinais perturbadores”, pois nunca deixara de apontar as incoerências, mesmo quando os ventos eram favoráveis. Dizia, de forma lapidar e ainda hoje actual: “É aparente uma visão limitada e mercantilista da Ciência. Serão talvez sinais dos tempos em que tudo o que se faz é para dar lucro e em que se proclama, a propósito e a despropósito, a filosofia triunfalista do mercado e do privado como panaceia para resolver atrasos económicos, sociais e culturais. É uma verdadeira cruzada «mercantilista» a que só falta proclamar como objectivo último a privatização do próprio Estado como forma mágica e expedita de resolver todas as carências e insuficiências públicas. Sobretudo não deixa de ser surpreendente o entusiasmo militante de alguns universitários, do mais elevado escalão, para acções empresariais no domínio da tecnologia em contraste flagrante com a sua inoperância científica e académica…”.

E assim prosseguia, com palavras sensatas, ainda hoje difíceis de se acharem nesta formulação tão clara, ilustrativa das tensões que tragicamente perpassam o debate em torno das políticas científicas por todo o mundo contemporâneo: “Há sem dúvida uma lamentável confusão entre o que é Ciência e o que é Tecnologia. As suas relações últimas são bem conhecidas e necessárias, mas o uso indiscriminado da expressão «Ciência e Tecnologia» está a gerar graves ambiguidades programáticas que podem prejudicar o desenvolvimento científico e o desenvolvimento tecnológico. Confunde-se o prático com o académico, o formativo com o produtivo, o comercial com o cultural. Não há de facto nenhuma incorreção em desejar introduzir, fomentar e desenvolver novas tecnologias no País. O progresso tecnológico é não só possivel como desejável. Mas pretender programar o desenvolvimento da Ciência da mesma forma é ter uma ideia bastante limitada do que é Ciência e como é que o seu desenvolvimento se processou nos países mais avançados que há muito têm Ciência e Tecnologia”. x

Em suma, para David-Ferreira, como muitos outros que não se deixam enredar em tibiezas nestes assuntos da organização e apoio à Ciência, o caminho só poderia ser um: “reforço dos orçamentos ordinários das instituições contempladas” – universidades e demais instituições científicas e da rede do ensino superior –, “abertura de concursos para projectos em que sejam previstas verbas para funcionamento e [sobretudo] o descongelamento dos quadros” [universitários].xi É a política positiva que defendia, que permitesse não só incentivar o avanço do conhecimento como a empregabilidade científica, colocando à disposição das instituições e das pessoas as condições para o desenvolvimento do trabalho científico, sério e maduro, que não estivesse apenas ao “sabor” das oscilações do mercado, mas que pudesse contribuir para a formação do homem, para o despertar de vocações e para a cultura científica que, em suma, pudesse fazer “escola” tal como a sua geração logrou alcançar.

i Mário Ruivo, Entrevista realizada por José Pedro David-Ferreira, em 30 de Abril de 2013. Disponível em: [http://jfdf.pt/]. Acesso em: 18 de Outubro de 2016.

ii Luísa Irene Dias Amado, Entrevista realizada por José Pedro David-Ferreira, em 30 de Abril de 2013. Disponível em: [http://jfdf.pt/]. Acesso em: 5 de Novembro de 2016.

iii José Francisco David-Ferreira, “A lição do Mestre: Augusto P. Celestino da Costa (1884-1956) – Uma Época, uma Vida, uma Obra”, Palestra proferido na Conferência Anual ‘A lição dos Mestres’, na Faculdade de Medecina da Universidade de Lisboa, no dia 5 de Janeiro de 2012, decorrida na Aula Magna da Faculdade de Medicina de Lisboa a propósito da 1ª Sessão Clínica desse ano. Texto disponível em: [http://jfdf.pt/]. Acesso em: 21 de Outubro de 2016.

iv David-Ferreira conta-nos sobre os primórdios da microscopia em Portugal, antes da electrônica, os primeiros passos da microscopia óptica: «Apesar de separados pela distância geográfica e cultural dos centros europeus onde nasceu a Ciência, cedo se começaram a acompanhar em Portugal os progressos da microscopia. Os iniciados trouxeram a notícia da sua utilização na investigação laboratorial e das suas potencialidades na prática médica. Foi nos alvores do século XX que o microscópio adquiriu entre nós direito de cidade. É uma história que já foi escrita....» José Francisco David-Ferreira, “As Metamorfoses do Microscópio e do Instituto de Histologia e Embriologia”, Aula proferida pelo Prof. Doutor José Francisco David-Ferreira na sua cerimónia de homenagem, de Jubilação, na Aula Magna da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, no dia 1 de Julho de 1999. Disponível em: [http://jfdf.pt/]. Acesso em: 16 de Novembro de 2016.

v José Francisco David-Ferreira, “A contribuição da Fundação Calouste Gulbenkian para o desenvolvimento da investigação biomédica em Portugal”, Jornal da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa, 60 (8), 1986, pp. 397-400.

vi José Francisco David-Ferreira, Curriculum Vitae, Lisboa, 1978. Disponível em: [http://jfdf.pt/]. Acesso em: 18 de Outubro de 2016.

vii Para o conselho consultivo da área de Ciência da Saúde. Cf. Despacho n.º 107, Secretaria de Estado do Ensino Superior, Diário da República, II.ª Série, n.º 265, 16 de Novembro de 1984.

viii David-Ferreira assinou também uma «Declaração pública sobre o programa ‘Ciência’» (1990-1993), que se oponha ao modelo de desenvolvimento científico, que então, entre outros aspectos então criticados, excluía as ciências sociais e humanas. Pasta 004593, Programa Ciência, JNICT, Arquivo de Ciênica e Tecnologia da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

ix José Francisco David-Ferreira, “Advento e Consolidação da Investigação Biomédica em Portugal. Contribuição da escola de Histologia de Lisboa”. Escrito não publicado, é uma versão mais extensa de um texto publicado, em português, "Nascimento e consolidação da investigação biomédica em Lisboa", In: Constantino Sakellarides e Manuel Valente Alves (eds.), Lisboa, Saúde e Inovação. Do Renascimento aos dias de hoje. Lisboa, Saúde e Inovação, Editora Gradiva, 2008, pp. 205-212. Disponível em: [http://jfdf.pt/]. Acesso em: 20 de Novembro de 2016.

x José Francisco David-Ferreira, “Quem ataca uma moda dominante fica de fora...”, Revista de Medicina, IV série, vol. 1, n.º 6, Out./ Nov. /Dez. e Jan. / Fev. / Mar., 1990 e 1991, pp. 1-2.

xi José Francisco David-Ferreira, “Bolseiros até quando?”, Revista de Medicina, V série, vol. 1, n.º 2, Out./ Nov. /Dez., 1994, pp. 3-4.

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