Que nunca mais!

Nº 1745 - Inverno 2018
Publicado em Editorial por: Revista Seara Nova (autor)

"Revemos as imagens, relemos as histórias, e o assombro sufoca-nos: milhões de mortos, cidades inteiras arrasadas, destruições indiscriminadas, a massificação e a industrialização da morte, onde nenhum holocausto é possível sem a desumanização, sem a deliberada coisificação dos seres humanos. Porquê? Para quê?"

 

 

 

 


"Na actualidade, num mundo marcado, irreversivelmente, pela globalização e pela revolução tecnológica, as óbvias vantagens daí decorrentes impõe-nos que atentemos nos seus inevitáveis inconvenientes."

 

 

 

 


"O “inimigo” passou a ser, para essas forças e ideologias, o “outro”."

 

 

 

 

 

 

 

"No quadro das relações multilaterais com os países da Lusofonia, somos tocados por um acontecimento que não nos pode ser estranho: a eleição no Brasil (28/10/2018) de um Presidente da República que se propõe seguir comportamentos que na Europa são tidos como fascistas e que extravasam do cânone democrático da CPLP. Isto não nos dirá respeito?"

No passado dia 11 de Novembro comemorou-se, um pouco por todo o mundo, com especial destaque para Paris, sob o Arco do Triunfo, na presença dos mais altos representantes de 70 países, vencedores e vencidos, o centenário da assinatura do Armistício que pôs fim à 1.ª Grande Guerra. Também este ano se comemora o 73.º aniversário do fim da 2.ª Guerra Mundial, em Maio de 1945, na Europa – mas que continuaria no Oriente até ao lançamento da bomba atómica sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão, em Agosto seguinte.

Duas grandes guerras, à escala mundial, no período de 70 anos, ambas a marcar o século XX, duas catástrofes como a Humanidade jamais conhecera. Dois conflitos com início e principal teatro de operações na Europa, o mais pequeno dos continentes (aliás, um sub-continente da Euroásia), o “continente selvagem”, farol de cultura e desenvolvimento do mundo moderno. Revemos as imagens, relemos as histórias, e o assombro sufoca-nos: milhões de mortos, cidades inteiras arrasadas, destruições indiscriminadas, a massificação e a industrialização da morte, onde nenhum holocausto é possível sem a desumanização, sem a deliberada coisificação dos seres humanos. Porquê? Para quê?

Deste imenso desvario, desta barbárie à solta, ficou-nos do século XX um ror de lições: não só do próprio tempo e do teatro das guerras, mas também do período entre elas, em que a primeira “chocou” a segunda com o bacilo do fascismo e do nazismo. Dessas lições ficou a criação, logo em 1945, da ONU, cuja Assembleia Geral proclamou, em 10 de Dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de que celebramos agora o 70.º aniversário, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, na qual se reconhece que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”.

Na actualidade, num mundo marcado, irreversivelmente, pela globalização e pela revolução tecnológica, as óbvias vantagens daí decorrentes impõe-nos que atentemos nos seus inevitáveis inconvenientes. A crise económica que grassou a partir de 2007/2008 reflectiu-se negativamente nos valores da democracia política e social e da liberdade, bem como na solidariedade entre povos e países, e a austeridade sobrepondo-se-lhes, conduziu à negação de direitos individuais, a situações extremas de empobrecimento e exclusão social.

O drama das migrações maciças, como na América Central, ou, na Europa do Mediterrâneo, da chegada de milhares de refugiados oriundos do Médio Oriente e da África sub-sahariana, é causa de sérias perturbações na coesão social dos países envolvidos, aproveitadas por forças radicais de direita, extravasando para forças políticas de inspiração nacionalista, racista, neofascista ou neonazi, marcando novas fronteiras de um racismo mais abrangente que inclui etnia, sexo, língua, religião, opiniões políticas, além de condições pessoais e sociais. O “inimigo” passou a ser, para essas forças e ideologias, o “outro”.

Portugal, que, por razões geográficas, não tem sofrido directamente as consequências desse fenómeno migratório, tem, a seu favor, historicamente, a herança dos 48 de fascismo, como vacina contra as práticas ideológicas pró-fascistas. Além de um movimento sindical que, atento e activo na defesa dos trabalhadores, tem contribuído decisivamente para assegurar o essencial dos direitos, liberdades e garantias que a Constituição reconhece aos cidadãos. Todavia, o nosso dever de solidariedade com os demais povos não nos permite ficar alheios ao contágio do que vai pelo mundo. Sobretudo agora que, no quadro das relações multilaterais com os países da Lusofonia, somos tocados por um acontecimento que não nos pode ser estranho: a eleição no Brasil (28/10/2018) de um Presidente da República que se propõe seguir comportamentos que na Europa são tidos como fascistas e que extravasam do cânone democrático da CPLP. Isto não nos dirá respeito?

Neste quadro político e ideológico, a meio ano das próximas eleições europeias, perante os riscos que a perversão das novas tecnologias está a revelar para a democracia, atingindo a fiabilidade da democracia representativa, a democracia “do voto”, cresce já, por essa Europa, a consciência da necessidade de uma reacção rápida e conjunta perante a continuada erosão da democracia e os sucessos inquietantes das forças de direita radicais (já instaladas, pela via do populismo, em parlamentos e governos) e para a formação de uma ampla frente democrática, republicana e popular, por uma política europeia e nacional comum, contra todas as formas de discriminação racial e de xenofobia, do fascismo e do neofascismo, do nacionalismo e do obscurantismo, em defesa das liberdades democráticas, da liberdade de imprensa, da separação de poderes, numa Europa de paz, nas suas fronteiras e em todo o Mundo.

Contra o esquecimento, contra a amnésia da História. Barbárie, fascismo: QUE NUNCA MAIS!


É desesperante a situação em que Portugal se encontra.

São preocupantes os aspectos e indicadores financeiros, económicos, sociais, mas é limitativo confinar a tais planos a gravidade da situação actual do nosso País. No entanto são tais indicadores que em primeira análise dão a exacta medida das nefastas políticas que têm sido adoptadas e da fraca qualidade dos governantes que têm estado à frente dos destinos deste País, bem como das distorções do sistema económico em que estamos inseridos.

Dizemos que é limitativo, porque a degradação da sociedade portuguesa – e igualmente da europeia – é grave noutros planos, como o político, em que a democracia está restringida a aspectos formais, sempre mais limitados; como o cívico, onde o envolvimento das populações e dos cidadãos individualmente considerados nos destinos do País é cada vez menor, porque menos estimulado ou menos apoiado (caso do movimento associativo); como o cultural, onde apesar de muitas e interessantes manifestações, estas se destinam predominantemente a elites e os estímulos junto dos mais jovens são muito reduzidos; como o ético, com os exemplos pouco edificantes dos representantes dos poderes em casos de corrupção conhecidos ou suspeitados, com o desprestígio da justiça, provavelmente consequência principal de legislação inadequada, mas cuidadosamente elaborada para discreto benefício dos poderosos; e com os valores dominantes do sucesso individual sem olhar a meios, do individualismo exacerbado, da aceitação propagandeada de uma sociedade de injustiça e desigualdade social, temperada de uma caridadezinha quanto baste.

Haverá uma saída a curto / médio prazo?

Olhemos sucintamente os planos financeiro, económico e social: uma dívida externa elevada, pública, mas principalmente privada, com a banca descapitalizada (apesar das ajudas); um aparelho produtivo a ser extensa e servilmente destruído, desde o primeiro governo de Cavaco Silva; um mercado interno em retração, provavelmente cada vez mais acentuada dado o ataque aos direitos laborais e o crescimento do desemprego; a errada opção de privilegiar as exportações, constrangidas pela estagnação europeia; as dificuldades e ausência de apoios suficientes às pequenas e médias empresas, cujo peso é determinante no tecido produtivo do país; um desemprego descontrolado; a diminuição da parte dos salários no rendimento nacional; o nível muito baixo das reformas e o crescimento das manchas de pobreza.

A culminar tudo isto, uma política cega pela vulgaridade do neoliberalismo, sob a inadequação e malvadez das receitas da troika FMI/UE/BCE, condicionada pela inexperiência dos governantes e submetida às ordens das maiores potências europeias e a um patronato que ainda vegeta em ideias do século XIX.

Mas o descontentamento vai aumentando. Seria impensável que assim não fosse: a política em curso ofende as expectativas e os direitos de trabalhadores, de jovens e de idosos, dos estudantes, das forças de segurança e das forças militares, dos pequenos e médios empresários e de todos os sectores do funcionalismo público.

O que há de novo é que a resignação vai dando lugar à contestação e ao protesto.

Aí estão a comprová-lo as manifestações, concentrações, vigílias, abaixo-assinados e petições, vaias aos governantes e ao PR nas suas deslocações, contestação crescente na blogosfera. E acima de tudo a enorme manifestação sindical de 11 de Fevereiro, que no dizer da CGTP-IN transformou o Terreiro do Paço em “Terreiro da Luta” e a coragem desta em convocar uma greve geral para 22 de Março.

Esta luta alargada pode impor que a política nacional responda às reais necessidades do nosso País, na correcção dos desequilíbrios antes assinalados, em vez de estar subordinada à troika - instrumento do grande poder financeiro.

É isto possível na União Europeia e no espaço do euro?

A integração europeia sempre foi um projeto do grande capital europeu. Mas incorporou ideais democráticos e a defesa dos valores da liberdade, instituiu o modelo social europeu, inscreveu como seus princípios a coesão económica e social e a harmonização no progresso. Outros povos europeus – gregos, espanhóis, franceses, irlandeses, ingleses, belgas – lutam contra a actual política retrógrada imposta pela UE e respectivos governos. Os portugueses não estão sós na sua luta; e hão-de estar determinados a não seguir o caminho que nos esperará se continuarmos a deixar que aqui se reproduzam as selváticas medidas impostas ao povo grego.

Por cá, na Seara Nova, vamos dando o contributo possível na defesa dos valores democráticos, na promoção da cultura, na exigência de justiça social, na denúncia da política que não olha aos interesses do povo, tudo em respeito das tradições nobres desta revista de 90 anos.

Estamos a comemorar o 90.º Aniversário em justa homenagem aos que construíram e mantiveram esta revista, sempre num plano elevado que a colocam como uma referência da nossa democracia e da história portuguesa do século XX.

Dentro das comemorações “90 Anos Seara Nova” este é o terceiro número da revista que dá destaque ao 90.º Aniversário. Já realizámos duas Conferências Seara Nova, sob os temas “O Projecto Seara Nova” e “Leituras da Crise”, que foram assinaláveis êxitos, pela qualidade das intervenções dos oradores, pelo número de presenças e pela elevação dos debates. Inauguramos no Palácio Galveias, gentilmente cedido pela Câmara Municipal de Lisboa, a Exposição Itinerante que tem por título “90 Anos de Intervenção Cívica e Cultural”, onde se manterá até ao final de Abril.

Entre outras iniciativas, está em preparação a 3.ª Conferência, sobre Comunicação Social, prevista para finais de Maio e organiza-se a lista das entidades e locais por onde circulará a Exposição. Esperamos contar com a presença dos nossos assinantes e leitores.

Nestas ações temos o apoio de uma Comissão de Honra, identificada noutro local desta revista e o patrocínio institucional da Câmara Municipal de Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Casa Museu Abel Salazar, Fundação Mário Soares e Fundação José Saramago.

As comemorações do 90.º aniversário da Seara Nova têm igualmente servido para divulgar a revista e é com agrado que registamos o número crescente de visitas ao sítio da internet inaugurado no âmbito destas comemorações e os quase 2.000 amigos que nos seguem no facebook.

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