Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto nos 40 anos da Constituição da República Portuguesa de 1976

Nº 1735 - Primavera 2016
Publicado em Economia Social por: Augusto Flor (autor)

Este ano comemoram-se os 40 anos da aprovação, promulgação e publicação da Constituição da República Portuguesa de cariz democrático no seguimento da Revolução de 25 de Abril de 1974. Comemoram-se igualmente os 40 anos das primeiras eleições autárquicas em democracia. Quer uma quer outra efeméride, têm muito a ver com o movimento associativo popular que aqui nos trás. Contudo, este associativismo não "cai do céu". Talvez seja justo afirmarmos que é uma construção social com base nas necessidades e iniciativa popular de caracter informal, por um lado, e um processo formal e legislativo por outro.

O processo de construção formal do associativismo

Segundo a Constituição Política da Monarquia de 1822 -Artigo 7.º "A Livre communicação dos pensamentos é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo o Portuguez pode conseguintemente, sem dependencia de censura previa, manifestar suas opiniões em qualquer materia".Podemos assim afirmar que era dado o primeiro passo para, no plano formal, se instituir o que mais tarde viria a ser o associativismo.

Por seu turno, a Carta Constitucional da Monarquia Portuguesa de 1826, afirma, no seu Artigo 145.º "Todos podem communicar os seus pensamentos por palavras, escriptos, e publica-los pela Imprensa sem dependencia de censura", dava o segundo passo, decisivo para quem associasse a liberdade de pensamento à liberdade de expressão.

A Constituição da Monarquia Portuguesa de 1838 vem consolidar este processo ao afirmar no seu Artigo 14.º "Todos os Cidadãos tem o direito de se associar na conformidade das leis" o que, vem consolidar todos os direitos e liberdades antecedentes - pensamento, expressão e reunião.

A instauração da República em 5 de Outubro de 1910, alterou o regime e sistema político vigente em Portugal e conduziu a uma nova Constituição, neste caso, da República Portuguesa, aprovada e publicada em 1911 onde se podia ler no seu Artigo 14.º "O Direito de reunião e associação é livre. Leis especiaes determinarão a forma e condições do exercicio". Estamos perante um reconhecimento formal da maior importância para a sociedade portuguesa que impulsionou o surgimento de novas associações.

Já a Constituição da República Portuguesa de 1933, tem inscrito no seu Artigo 14.º "A liberdade de reunião e associação" mas, no ponto 20 pode ler-se: "Leis especiais regularão o exercício da liberdade de expressão do pensamento, de ensino, de reunião e de associação, devendo, quanto à primeira, impedir preventiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força social, e salvaguardar a integridade moral dos cidadãos, a quem ficará assegurado o direito de fazer inserir gratuitamente a rectificação ou defesa na publicação periódica em que forem injuriados ou infamados, sem prejuízo de qualquer outra responsabilidade ou procedimento determinado na lei." Na prática, a regra é subvertida pela excepção e assim foi durante 48 anos.

Com a Revolução de 25 de Abril de 1974 e as eleições livres de 1975 para a Assembleia Constituinte, é aprovada (2 de Abril 1976) a nova Constituição da República Portuguesa que vem consagrar todos os direitos, liberdades e garantias, sendo exemplo disso o Artigo 46.º que refere expressamente a Liberdade de Associação.

"1. Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal."

"2. As associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial."

"3. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação nem coagido por qualquer meio a permanecer nela."

"4. Não são consentidas associações armadas nem do tipo militar, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista."

Temos assim um processo dialéctico de construção da matriz que permitiu a existência formal do associativismo tal como o conhecemos hoje, assente na liberdade de pensamento, expressão, reunião e associação. Momentos históricos como a Revolução de Abril, abriram caminho ao surgimento de milhares de novas associações dos mais variados matizes. Estima-se que em 1974 existissem cerca de 8.000 associações e em 1993 (Congresso de Almada) existissem cerca de 18.000. Foi um movimento impulsionado pelas populações com um forte apoio das autarquias enquanto poder local.

De dirigente associativo a autarca

Quando se fala de poder local autárquico, é "obrigatório" estabelecer a sua relação de proximidade com o movimento associativo. Desde logo porque muitos dos autarcas que assumiram pela primeira vez pós 25 de Abril cargos na administração local, tiveram proveniência no associativismo.

Existem alguns estudiosos que afirmam que, tal como a "crise do associativismo" dos anos 60 resultado da mobilização para a guerra colonial e a emigração forçada, também a "sangria" de dirigentes das colectividades registada pós 25 de Abril se deveu ao seu envolvimento em partidos políticos, sindicatos e autarquias, gerou nova crise. Este envolvimento era natural porque muitos desses dirigentes associativos já tinham actividade política, sindical e, sobretudo, experiência de vida democrática dentro das colectividades.

A experiência associativa assente nos princípios do Código Civil tais como a separação de poderes e a existência de órgãos deliberativos (assembleias gerais); executivos (direcção) e fiscalizadores (conselho fiscal) adaptaram-se com toda a naturalidade às tarefas e cargos autárquicos, quer fosse nas freguesias, quer fosse nos municípios.

Por outro lado, quer do ponto de vista quantitativo, quer qualitativo, era conhecido o grau de compromisso e estava devidamente identificado uma vez que são voluntários e benévolos. São eleitos pelas suas assembleias gerais eleitorais, prestam contas com a regularidade e rigor dos estatutos e regulamentos gerais internos com base no Código Civil e, em última análise, pagam com os seus bens pessoais e a sua liberdade eventuais erros que cometam. Aliás, é bem patente que a exigência do Estado aos vários níveis tem aumentado desproporcionadamente face aos apoios e reconhecimento que é devido ao associativismo e aos seus dirigentes.

Poder local associativo e poder local autárquico - a mesma luta

A Plataforma em Defesa das Freguesias, contra a fusão de freguesias, processo que deve reverter-se logo que possível, foi um excelente exemplo da proximidade das autarquias, particularmente das freguesias e das associações. Tivemos oportunidade de ver em Lisboa duas grandiosas manifestações/concentrações (Avenida da Liberdade e Belém) onde a grande maioria dos manifestantes eram os dirigentes e praticantes de actividades associativas como Ranchos Folclóricos, Grupos de Bombos e Bandas Filarmónicas.

Esta manifestação de solidariedade foi consciente e absolutamente necessária tendo em vista o que estava em causa. Hoje são muitos os autarcas que manifestam dificuldades acrescidas de apoiar o associativismo quer por razões de sobrecarga territorial e demográfica, quer por impossibilidade financeira desajustada à nova realidade. Perderam todos e as comunidades têm-se ressentido desta situação.

A acção conjunta destes dois poderes deixou algumas lições que devemos reter: por um lado, a grande proximidade de missões e objectivos; por outro lado, a potencialidade que estes dois poderes detêm na mobilização das populações e na capacidade de transformação social que pode gerar. Em conjunto, estes dois poderes, podem contribuir decisivamente para a melhoria das condições de vida das populações e para a consciencialização das mesmas.

O Associativismo popular como maior rede social e de voluntariado de Portugal

O surgimento da Conta Satélite da Economia Social, publicado pelo INE, veio demonstrar que das cerca de 55.000 entidades da economia social (cooperativas; associações de desenvolvimento local; fundações; associações com estatuto IPSS; montepios; mutualidades; misericórdias; colectividades de cultura, recreio e desporto) estas últimas representavam mais de 50% ou seja cerca de 30.000.

Estudos feitos e publicados por universidades, apontam para que, em média, cada colectividade tenha 15 dirigentes ou seja: nove na direcção; três no conselho fiscal e três na mesa da assembleia geral. Assim, estima-se que existam cerca de 425.000 dirigentes associativos voluntários e benévolos em Portugal o que faz deste movimento a maior rede social do país e o maior volume de voluntariado uma vez que, no total, Portugal conta com cerca de um milhão de voluntários.

Chegados aqui, podemos afirmar sem dúvidas que o Movimento Associativo Popular (MAP) é de facto, um poder local, regional e nacional. Importa doravante olhar este movimento como algo que contribui de forma decisiva para a economia local, regional e nacional, para a democracia participativa e para a coesão social uma vez que, com a sua actividade regular e regulada, desempenha um papel incontornável no acesso, fruição e criação cultural, recreativa e desportiva com enorme impacto na prevenção social.

Enquanto a maioria dos restantes segmentos têm práticas de remediação social, isto é, actuam quando os seres humanos já se encontram em dificuldades, em dor e sofrimento, o MAP actua na fase de prevenção junto de crianças, jovens, adultos e idosos, de todas as condições económicas e sociais, por todo o território, proporcionando-lhes noções de disciplina, valores, prazer e felicidade.

O perfil dos dirigentes associativos

É do conhecimento geral que o associativismo tem proveniência nos movimentos liberais do século XIX, nos ideais da Revolução Francesa e das transformações sociais da Revolução Industrial. As deslocalizações da agricultura para a indústria, do interior para o litoral, do campo para a cidade, a nova composição social e a necessidade de reconstrução das identidades de origem, a par das necessidades sociais e de aprendizagem da leitura, da música e da expressão dramática, fizeram despontar o associativismo. Os seus primeiros dirigentes eram pessoas determinadas e com enorme paixão mas pouco letradas. O conhecimento passava através da experiência (empirismo) de geração em geração e assim chegaram aos nossos dias. A essas gerações, a quem nunca seremos suficientemente gratos, devemos o associativismo que temos hoje.

A realidade, contudo, alterou-se. Grande parte dos nossos dirigentes actuais tem formação média e mesmo superior. Usam as novas tecnologias em grande parte das suas actividades. Comunicam nas redes sociais e exploram meios tecnológicos impensáveis há meio século. Não sendo uma realidade generalizada a todo o movimento, podemos afirmar que a grande maioria ou já possui conhecimentos tecnológicos ou está sensibilizado para o seu uso.

Esta questão é fundamental para o tipo de relações que se podem estabelecer entre o MAP e os restantes poderes. Desde logo, desapareceu o conceito de "carola" que se entretinha a fazer umas coisitas. Temos hoje um Dirigente Associativo com formação, qualificação e responsabilidade civil e criminal que tem conhecimento nas áreas da gestão, da comunicação, da fiscalidade, etc.

Os filiados tornaram-se mais exigentes. O Estado, aos vários níveis, tornou-se mais exigente. A concorrência com os privados que desempenham funções e prestam serviços que só o MAP prestava aumentou. As necessidades das populações mudaram e tornaram-se mais exigentes em todos os aspectos. O dirigente associativo percebeu que a boa vontade, a entrega, a determinação e a paixão que sempre foram essenciais ao MAP, tinham que ser complementadas com formação e qualificação.

O futuro das relações entre os poderes autárquico e associativo

A 7 de Novembro passado, a Confederação Portuguesa das Colectividades e outras oito organizações nacionais representativas do associativismo português, no encerramento do Congresso Nacional das Colectividades, Associações e Clubes que se desenvolveu durante oito meses e por todo o país, apresentaram um Memorando Associativo com 78 temas desenvolvidos onde fazem um diagnóstico pormenorizado do estado do associativismo em Portugal. Aprovaram ainda um Manifesto - Recomendações estratégicas com uma pesrpectiva a 12 anos onde fazem recomendações ao próprio movimento associativo, e a outras áreas do poder entre as quais as autarquias.

No Manifesto, entre outros aspectos, pode ler-se: "Promover a auscultação das associações em todos os órgãos de gestão autárquica através de mecanismos específicos ou integrados de âmbito municipal". Sendo já uma prática em muitas autarquias, é recomendável qua esta boa prática seja generalizada uma vez que permite por um lado uma maior troca de informação e consequentemente de consciencialização de todas as partes com vista a prevenir problemas.

Um outro aspecto tem a ver com a criação/promoção dos regulamentos de apoio municipais que sendo uma forma transparente e coerente de apoiar as associações, poderá em alguns casos impedir o acesso a uma grande parte das associações (estima-se em cerca de 60%) por falta de capacitação e de meios informáticos das associações e de alguns dos seus dirigentes.

Uma terceira questão, tem a ver com os licenciamentos obrigatórios a que cada dirigente se vê obrigado quando decide realizar uma simples iniciativa. O conjunto de licenças e autorizações prévias (SPA, Pass Música, DGAC, IPDJ, Ruido, Via pública, PSP, GNR, etc) é de tal forma que acaba por empurrar o dirigente para a ilegalidade inconsciente ou a gastar horas e meios financeiros de que não dispõe. A recomendação vai no sentido que seja criado com o apoio das autarquias e sem encargos para estas, de um Balcão Único para todas as licenças devendo a Junta de Freguesia ser o elemento central desta nova realidade, quer pela proximidade quer pelo serviço que já tem instalado.

Por tudo o que atrás se descreve, podemos concluir que por razões sociológicas, económicas, políticas e sociais, as relações entre o poder local autárquico e o poder local associativo devem reforçar-se e, em conjunto, lutar por uma nova sociedade em que cada individuo seja considerado numa pesrpectiva humanística e não meramente estatística.

Devemos, em conjunto, defender a democracia participativa complementarmente à democracia representativa e onde cada autarca e cada dirigente associativo sejam mais do que meros "servidores" mas antes, gente com causas e agentes de transformação social.

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