Entrevista a Roberto Zamora - Associação Internacional de Juristas Democratas “O princípio da igualdade entre nações não existe”

Nº 1735 - Primavera 2016
Publicado em Internacional por: Ana Goulart (autor), Antunes Amor (fotógrafo)

Com apenas 23 anos de idade, Roberto Zamora, estudante do 3.º ano de Direito, moveu um processo contra o Estado da Costa Rica. Ganhou-o no Supremo Tribunal e conseguiu que o Tribunal Constitucional do seu país declarasse inconstitucional o apoio dado pelo governo costarriquenhos à invasão do Iraque. Há seis anos, o jovem advogado aderiu à Associação Internacional de Juristas Democratas (AIJD), onde encontrou o espaço certo para aplicar o seu longo currículo feito de inúmeras formações, teses e intervenções em defesa dos direitos humanos e do direito dos povos à paz. Como membro da AIJD representou esta no processo do Conselho de Direitos Humanos de construção do código do direito à paz. É também membro da Associação Americana de Juristas (AAJ), da Associação Internacional de Advogados contra as Armas Nucleares (IALANA) e da Associação Espanhola de Direito Internacional sobre Direitos Humanos (AEDIDH) e do comité consultivo do Tribunal Brussell para Justiça no Iraque.

Seara Nova (SN) - Ao 11 de Setembro de 2001, os Estados Unidos responderam com a invasão do Iraque em Março de 2003. De então para cá, tem-se assistido a uma escalada de violência que atinge sobretudo o Médio Oriente. Que significou a invasão e a guerra no Iraque?

Roberto Zamora (RZ) - O conflito no Iraque foi uma guerra ilegal. Totalmente ilegal. Sem mandato das Nações Unida. A resolução 1441 do Conselho de Segurança da ONU solicitava mais inspecções, dado que o regime de Saddam Hussein havia aberto as suas instalações, para que verificassem a existência ou não de armas de destruição maciça. A guerra começa ilegalmente, porém, chega um momento em que as Nações Unidas autorizam a ocupação. Nisto reside o problema, porque se legalizou uma guerra ilegal. Isto debilitou o sistema das Nações Unidas.

SN- Porquê?

RZ - Estabelecem-se duas categorias de Estados, os poderosos que podem actuar de forma unilateral e os pequenos que devem submeter-se à vontade dos poderosos, que são os que dominam o Conselho de Segurança da ONU. Parece-me absurdo que estando o Conselho de Segurança encarregue de manter a paz, os seus membros permanentes sejam países que não sabem nada de paz. São os maiores produtores de armas do mundo, armas que são usadas por exemplo, pelo Estado Islâmico, e produzidas para manter uma guerra perpétua no Médio Oriente, guerra por petróleo, gás natural e outros recursos, e para manter a indústria militar dos cinco países membros permanentes do Conselho de Segurança. Se a ONU tivesse condenado a invasão do Iraque e ordenado a saída das forças militares estrangeiras para que o povo iraquiano no exercício do seu direito de livre determinação resolvesse a sua situação, possivelmente esta escalada de violência não teria sucedido.

SN - A ONU tem responsabilidades na escalada de violência que desde 2003 se tem verificado?

RZ - Penso que a ONU não é responsável pelo início da guerra, mas é responsável pela sua continuação. Porque legalizou o ilegal e não interveio. Isto levou ao seu debilitamento institucional e eliminou a autoridade ética e moral das Nações Unidas como órgão regulador das relações internacionais, das relações entre as diferentes nações. E creio que os problemas actuais decorrem em grande parte deste comportamento da ONU. Se os atentados ocorreram? Se a Daesh foi uma invenção de alguns governos para que a Turquia possa comprar petróleo barato? Quando se agrupam as respostas a estas questões, que já estão demonstradas (os russos demonstraram-nas) damo-nos conta de que sistema internacional surgido depois de 1949 está obsoleto. Que o princípio da igualdade entre nações não existe e que a soberania das nações está dependente da vontade dos poderosos.

SN - O que é preocupante.

RZ - Sem dúvida. E creio que os Estados pequenos devem unir-se para através da Assembleia Geral da ONU promover reformas. Isto se se quiser manter a existência das Nações Unidas. Se não se converter a ONU num órgão democrático, penso que o seu futuro não será muito amplo. Há organismos, como a Unicef, Unesco, Acnur que funcionam bem. Porém, no que toca à manutenção da paz no mundo, os organismos não funcionam.

SN - Todos os conflitos entretanto surgidos vêm rotulados, pelos meios de comunicação social, de combate ao terrorismo. Porquê?

RZ - Os meios de comunicação social, sobretudo ocidentais, têm tido um papel muito importante em mentir. São uma fonte de desinformação e muito parciais. Os atentados de 11 de Setembro foram reivindicados pela Al-Qaeda que é uma organização do Afeganistão e não do Iraque. Se o Afeganistão me ataca porque é que vou invadir o Iraque? Tanto assim que a invasão do Iraque não foi relacionada com os atentados de 11 de Setembro. Para além do petróleo e das armas, havia uma questão pessoal de Bush com Saddam Hussein que não tinha nada a ver com os atentados, o que ficou demonstrado quando não encontraram nenhuma arma de destruição maciça no Iraque. Os meios de comunicação social criaram uma situação inexistente e têm uma altíssima quota-parte de responsabilidade na situação mundial.

SN - Há quatro grandes agências noticiosas no mundo - Reuters, France Press, EFE e Associated Press - que produzem a grande maioria das notícias que a comunicação social publica. O que se passou com o Iraque continua a passar-se na actualidade?

RZ - A imprensa não parou de mentir.

SN - Como devemos entender a "Primavera árabe"?

RZ - Como um ponto de inflexão dos povos ante os seus governos. As redes sociais permitiram ampliar o conhecimento de outras realidades e efectivamente há sérios problemas de direitos humanos na região. E todos os povos chegam ao dia em que se rebelam contra a opressão. A "Primavera árabe" que se iniciou no Egipto é um tema complexo. Parece-me que há uma grande quantidade de elementos que não estão claros. Na minha opinião, o mais valioso foi que muitos entenderam que um povo que não luta não se livra da opressão.

SN - Voltando à comunicação social. Os media também incluem a Líbia e a Síria naquilo a que chamam "Primavera árabe".

RZ - A Líbia e a Síria foram claramente intervenções ilegais. Na minha opinião muito pessoal, e dado que sou um defensor intransigente do direito à auto-determinação dos povos e que cada povo tem o direito de encontrar o seu caminho de forma livre e voluntária, se um povo voluntariamente quer ter um chefe de Estado durante 50 anos porque se diz que isso não é democrático? Que o presidente ou o rei não é democrático? Se foi isso que o povo decidiu, quem são os outros para lhe dizer que a democracia é melhor do que a ditadura? Aliás, a História mostra-nos que as democracias se têm convertido em ditaduras institucionais, onde a cada quatro anos, as pessoas dispõem de um minuto para colocar uma cruz num papel. Esta não era a democracia de que falava Aristóteles!

SN - O direito de um povo à auto-determinação é um direito humano?

RZ - Sim. Está inscrito nos acordos internacionais. Tanto nos que regulam os direitos políticos e civis, como nos que regulam os direitos económicos, sociais e culturais. No caso que represento contra a guerra no Iraque reclamo a violação do direito internacional e dos direitos humanos. O parlamento não toca no tema, não o aceita nem o contesta, porém eu argumento que uma invasão estrangeira a um povo que está a viver o seu processo de desenvolvimento é uma violação do direito à auto-determinação.

SN - Falou de petróleo e guerra. Nunca se poderá falar de petróleo e paz?

RZ - (Riso) Acredito firmemente que a mais recente descida do preço do petróleo foi impulsionada pelos Estados Unidos para debilitar as políticas sociais encetadas por alguns Estados, nomeadamente na América Latina. A descida do preço do petróleo não está relacionada com um excesso de oferta. Há muito petróleo e há coisas que nos devem fazer pensar. Por exemplo, há um importante desenvolvimento científico e tecnológico em energias limpas - solar, hidroeléctrica, geotérmica, eólica - e que não dependem do petróleo. Assim temos que por um lado há uma tendência para o abandono do petróleo, no entanto, países grandes como os Estados Unidos, França, Inglaterra, Holanda, Espanha, China estão a investir em petróleo, na exploração de novos poços e refinarias de petróleo. Há uma contradição entre abandonar o petróleo e investir em mais petróleo. Tanto que este converteu-se num bem estratégico para fins políticos. Não me parece que seja do interesse dos países árabes baixarem o preço do petróleo. O seu interesse é aumentá-lo, uma vez que dispõem de um bem que todos necessitam. É assim que o capitalismo puro e duro, com o seu livre mercado, funciona. Nenhuma destas decisões é técnica, científica ou económica. Todas são políticas. E quando as decisões deixam de ser tomadas com base na ciência, na técnica entramos no mundo do irracional que muitas vezes está ligado à política.

SN - Então não há uma nova crise petrolífera?

RZ - Creio que não. O que penso é que há uma estratégia para debilitar Estados que se auto-determinaram livremente, o que desagradou a outros Estados. Se Kadafi era um ditador ou um bruto não sei. Sei que o indicador de desenvolvimento humano da Líbia tem um valor maior do que o da Arábia Saudita. O indicador de desenvolvimento humano do Iraque era muito mais elevado do que agora, 13 anos depois da invasão. Na Líbia, na Síria, no Iraque existia educação gratuita, saúde pública gratuita, agora não. Agora tudo está privatizado, tudo está sujeito ao livre mercado, ao capitalismo. Por isso, creio que a crise petrolífera é fictícia.

SN - Qual é o papel da Arábia Saudita no Médio Oriente?

RZ - A Arábia Saudita é um Estado-satélite dos Estados Unidos. Emiratos Árabes, Arábia Saudita, Qatar, Kuwai são dos países com piores indicadores em matéria de direitos humanos. Ouve-se os Estados Unidos criticá-los? Não. Porém, a Líbia sim. Embora em matéria de direitos humanos tivesse melhores indicadores do que a maioria dos Estados árabes. Porquê? Porque a Líbia não atribuía concessões às empresas estadunidenses.

SN - Como advogado que opinião tem do processo de impaechment da presidente do Brasil, Dilma Rousseff?

RZ - Não possuo informação suficiente. Há um movimento pendular entre esquerda e direita na História da América Latina e neste momento a direita está a tomar o parlamento do Brasil e temos este processo de impeachment. Na Argentina temos um governo desastroso, fascista. O que destaco é que foi com os governos de Lula e Dilma que o Brasil se converteu numa das maiores economias do mundo. Não foi um governo de direita que o conseguiu. Foram governos apoiados por socialistas, comunistas que obtiveram estes resultados económicos. De resto, a situação é muito complexa e não possuo informação suficiente.

SN - A União Europeia está a braços com uma crise económica, criou um problema a que a imprensa chama de "refugiados" e permitiu um governo fascista na Ucrânia. Isto são ameaças à paz, aos direitos humanos?

RZ - Totalmente. No caso dos migrantes e dos refugiados, o problema tem duas arestas e ambas têm o mesmo culpado. A primeira, porque fogem essas pessoas do seu país? Porque há uma guerra. A segunda, porque há uma guerra? Porque França, Espanha, Inglaterra, Alemanha a estão a fomentar. Os refugiados estão abrangidos por instrumentos internacionais que a União Europeia ratificou, mas não quer aplicar. É importante reter que um refugiado não sai do seu país porque quer, sai porque pode morrer. É uma questão de sobrevivência. O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidos considera que a emigração é e não é um direito humano, porque os Estados são soberanos para definir quem entra e quem não entra. Porém, há um direito humano de livre-trânsito. Temos uma contradição muito forte entre soberania estatal e direitos humanos. No caso especial dos refugiados, a soberania de um Estado deve ceder ante os direitos humanos. Isso não está a acontecer e também com uma contradição muito acentuada que tem de ser atacada: se os Estados europeus invadem a Síria porque lhes preocupa tanto os direitos humanos dos sírios, porque não cuidam dos direitos humanos quando os refugiados chegam? Parece que os direitos humanos terminam quando os sírios chegam à Europa.

SN - Porquê?

RZ - Sim, porquê? Porque a Europa tem claros problemas de violação dos direitos humanos e o caso de Ucrânia é um exemplo. Na Ucrânia há uma clara violação da liberdade de consciência, da liberdade de associação, da liberdade do povo auto-determinar o seu sistema político. E isto tudo é uma ameaça muito grande à paz. A ideia de que a paz é a ausência de guerra é uma ideia que foi abandonada há muitos anos.

SN - E não é?

RZ - A paz é um estado em que todos desfrutamos plenamente de todos os direitos humanos, livres do medo e da necessidade, como diz a Carta das Nações Unidas. Claro que esta parte nunca se lê, embora ninguém seja livre quando tem medo ou tem necessidades que não estão satisfeitas. Vivo a paz todos os dias quando livremente e sem medo vou à escola que o Estado me proporciona gratuitamente, quando estou doente sou tratado gratuitamente, quando o sistema fiscal é justo, quando há trabalho com salário digno. Isto é viver em paz e a ausência do que enunciei são as raízes, as causas da violência estrutural. Daí que todas as violações aos direitos humanos não são apenas uma ameaça à paz, mas uma violação da paz.

SN - Portugal está sob a intervenção do FMI, tal como a Costa Rica nos anos 90 esteve. As intervenções do FMI são uma violação dos direitos humanos?

RZ - Historicamente verifica-se que os níveis de desenvolvimento humano de um país diminuem sempre que o Fundo Monetário Internacional intervém. Não é uma casualidade.

SN - O Chile é um exemplo perfeito.

RZ - Portugal, Espanha, Grécia sofreram as consequências das imposições económicas do FMI e os povos destes países estão a dizer "isto está mal". Os povos percebem que essas imposições não são desenvolvimento, são para beneficiar aqueles que as impõem. Hoje, por todo o mundo temos governos corporativos que apenas defendem os interesses das corporações; temos democracias fascistas em todo o mundo. São ditaduras institucionalizadas através do mito da democracia reduzida a um minuto em cada quatro anos.

SN - E os direitos?

RZ - A melhor maneira de os defender é exercendo-os.

SN - Tudo isto, a situação no Médio Oriente, a Síria, os refugiados, a crise económica, está relacionado?

RZ - Creio que há relação de causas, de consequências, de intenções e o que é mais importante - há um conserto de vontades para criar o caos, porque há gente que lucra com o caos. Esta é a triste verdade. Os problemas actuais estão localizados numa região particular. Por isso, creio que tudo isto é o resultado de um conjunto de vontades corruptas, egoístas, mal-intencionadas. Não acredito em casualidades.

SN - Qual o papel da Associação Internacional de Juristas Democratas (AIJD)?

RZ - Desde há cinco anos que a AIJD está num processo de revitalização, de reconhecimento, a incorporar gente jovem. A Associação foi criada em 1947 para lutar contra o fascismo na Europa. Entre os seus fundadores está Rene Cassin [um dos redactores da Declaração Universal dos Direitos Humanos] que foi o primeiro presidente da Associação. A AIJD esteve representada e interveio no processo de independência da Índia, do fim do apartheid na África do Sul, nas negociações de paz nas Filipinas, estamos nas negociações da paz na Colômbia. Neste processo de fortalecimento da Associação temos o estatuto de consultor e uma representante permanente em Genebra, no Conselho de Direitos Humanos. Estamos a trabalhar num Código do Direito à Paz e somos assessores em conflitos populares. Somos uma organização com 60 países associados o que nos permite conhecer bem as realidades e encontrar soluções para a resolução dos problemas.

SN - Também fazem assessoria legal?

RZ - Sim, claro. É o que estamos a fazer na Colômbia. Prestamos assessoria qualificada, como juristas. Estive nas negociações de paz na Colômbia que apenas abandonei por razões de segurança dado que na Costa Rica há muitos colombianos e corria risco de vida.

SN - Porque se fala tanto de organizações como a Human Rights Watch (HRW) ou a Amnistia Internacional (AI) e tão pouco da AIJD?

RZ - Talvez por durante 15 anos a Associação ter estado muito debilitada. Também porque a AIJD está mais focada no resultado do que na publicidade. Somos mensageiros, não somos a mensagem. Na Associação, e isso é algo que me agrada particularmente, não há egos, mas uma grande humildade. Não ser a HRW ou a AI é muito positivo. A AIJD não permite que um donativo intervenha na sua agenda. A nossa agenda são os povos e a sua luta pelos direitos humanos, pela paz. Se esta lógica do que somos e do que queremos ser for invertida seremos como essas organizações que apenas se focam nos temas que são publicitados pelos grandes meios. A nossa Associação preocupa-se sobretudo com os que sofrem e que não têm qualquer apoio internacional porque ninguém sabe que estão a sofrer. O que nos move é a dignidade dos povos.

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