Jornalistas, poder económico e democracia

Nº 1735 - Primavera 2016
Publicado em Nacional por: Fernando Correia (autor)

Se quisermos caracterizar em breves palavras a situação na comunicação social no nosso país, em particular dos jornalistas e do jornalismo, mas abrangendo também outros trabalhadores do sector, facilmente encontraremos uma série de realidades que, no essencial, são comuns a outros ramos de actividade, nomeadamente: desvalorização e desrespeito pelo trabalho e pelos trabalhadores, precariedade e despedimentos, consolidação da concentração da propriedade, subvalorização do sector público.

Acontece que a fragilização do jornalismo e dos jornalistas não diz respeito apenas a um sector social específico - afecta todos os portugueses, privando-os do acesso a uma informação contextualizada, rigorosa e pluralista.

O que está em causa são as liberdades, a começar pela liberdade de imprensa, e os direitos, desde logo o direito a informar e a ser informado. E a vida tem provado até que ponto a qualidade do jornalismo e da informação está estreitamente ligada à qualidade da própria democracia.

Constrangimentos vários

O número de jornalistas activos desceu na última década cerca de 20%, a maior parte devido a despedimento, ainda que alguns sob a forma muitas vezes equívoca de "rescisão amigável". Mais de 43% dos profissionais contratados auferem menos de 1000 euros de salário mensal, incluindo alguns com mais de uma década de profissão.

A precariedade alastra, assumindo várias máscaras - diminuição dos salários reais, desrespeito pela contratação colectiva, não pagamento de horas extraordinárias, imposição da polivalência funcional em diversas plataformas sem respeito pelos direitos de autor, contratos a prazo ou de prestação de serviços, falsos recibos verdes, utilização sistemática de estagiários, pagamentos não superiores ao salário mínimo, utilização sucessiva de estagiários curriculares a custo zero e de freelancers para a ocupação de postos de trabalho.

Os jornalistas estão sujeitos a uma complexa rede de constrangimentos de vária natureza:

- constrangimentos profissionais, com o primado dado na produção da informação à velocidade, ao efémero e ao superficial, à diminuição do tempo para pensar, elaborar, contextualizar e investigar, ao lugar crescente dado aos critérios comerciais, à apropriação da informação pelo entretenimento, à tendência geral para o emagrecimento das redacções e consequente necessidade de tratar temáticas para as quais não estão preparados.

- constrangimentos deontológicos, com a imposição da comercialização e do sensacionalismo, da mistura do entretenimento e da publicidade com a informação, levando a comportamentos lesivos de princípios éticos fundamentais da profissão.

- constrangimentos funcionais, em que, invocando as chamadas "sinergias de grupo" e o melhor aproveitamento dos recursos humanos e logísticos, se procura, com menos gente e menos investimento, fazer o mesmo ou ainda mais, com diminuição da qualidade e introdução de um clima de insegurança.

Acresce o desincentivo mais ou menos explícito, quando não a proibição, da actividade sindical e as restrições e condicionamentos à acção das estruturas representativas dos trabalhadores - Conselhos de Redacção, delegados sindicais e comissões de trabalhadores.

Neste quadro de constrangimentos e pressões, particular destaque deve ser dado aos aspectos de natureza político-ideológica, concretizados, por um lado, na contaminação verbal e conceptual vinda quer das assessorias e empresas de comunicação quer de colunistas e comentadores, apresentados como "especialistas" e "independentes", mas visivelmente enfeudados a sectores políticos e ideológicos da direita.

Lembremo-nos da expressão "arco da governação", durante anos apresentada e naturalizada como algo de inevitável e perene, inerente à essência da democracia portuguesa. Teve o destino que se sabe - desapareceu em combate.

Outro caso é a utilização, generalizada e generalizante, do termo "classe política", pressupondo que todos os políticos (e por arrastamento todos os partidos e todas as formas de fazer política) sejam iguais, assim procurando esconder, por exemplo, as características e identidade próprias do PCP.

Um segundo aspecto tem a ver com as limitações ao pluralismo político e ideológico, concretizadas através de mecanismos internos de controlo como a escolha de responsáveis editorais e a definição da agenda. Tem também a ver, mais subtilmente, com o estabelecimento nas salas de redacção de um consenso implícito sobre o que pode ou não pode ser notícia, consenso este assegurado pelo medo da perda do emprego.

Estas limitações ao pluralismo são também flagrantes no noticiário internacional, dependente da agenda temática e dos ângulos de abordagem utilizados nos materiais distribuídos pelas grandes agências noticiosas de texto e imagem, nomeadamente anglo-americanas, subordinadas às estratégias das grandes potências capitalistas.

Natureza da propriedade e seus efeitos

Em toda esta situação, os grupos económicos proprietários dos media de maior influência - na imprensa, na rádio, na televisão e no digital - assumem um papel determinante. A mercantilização da informação que lhes é inerente traz consigo efeitos perversos que têm directamente a ver com o trabalho jornalístico.

Não são apenas os constrangimentos de natureza estritamente laboral que têm de ser considerados. No quadro da dupla lógica que enforma a actividade jornalística, a lógica comercial, gerada pelos imperativos económicos - indissociáveis dos interesses políticos e ideológicos - e que se reflecte nos critérios de selecção e de apresentação da informação, impõe-se frontalmente à lógica informativa, reflectida nos estatutos profissionais, nas normas deontológicas e nos livros de estilo.

Torna-se ostensiva a submissão da actividade jornalística às leis do mercado, com reflexos visíveis, nomeadamente, na importância dominante adquirida pela conquista das audiências, enquanto sinónimo do almejado aumento das receitas publicitárias. Sabe-se em que medida esta sujeição das estratégias informativas às estratégias comerciais leva ao sensacionalismo, à superficialidade, à informação-espectáculo e à manipulação.

As operações de despejo de jornalistas das salas de redacção são agravadas pela crescente influência - melhor dito: interferência - na produção da informação de novo tipo de intervenientes, condicionadores dos conteúdos e dos formatos jornalísticos mas alheios à ética e aos princípios que lhes são próprios - gestores, consultores, publicitários, especialistas de marketing e de promoção de vendas, etc., a que há que somar o peso crescente das empresas de comunicação e de assessoria, para já não falar nos omnipresentes comentadores - alguns, aliás, provenientes do próprio campo jornalístico.

O jornalismo de investigação praticamente desapareceu dos jornais, mas aumenta a presença da publicidade redigida, frequentemente mal se distinguindo, mesmo graficamente, do material noticioso, ao mesmo tempo que ganha contornos mais sofisticados um produto mediático em que informação, publicidade, ficção e entretenimento se combinam em doses variadas.

Tornam-se dominantes concepções como a de vender notícias, a notícia como mercadoria e não como bem social; instala-se a concorrência desenfreada e a busca obsessiva da cacha, da notícia em primeira-mão, a que se juntam, por necessidade e influência do online, a falta de tempo, a imediatez acrítica, que demasiadas vezes leva à precipitação e à desinformação.

Assiste-se a uma evolução perversa da cultura profissional: os jornalistas, nomeadamente os mais jovens, estão a interiorizar os princípios da concorrência económica, transfigurando-os em concorrência jornalística. A concorrência que beneficia o patrão é assumida como saudável emulação profissional; os imperativos económicos próprios da concorrência empresarial ganham estatuto de normas e técnicas específicas da prática jornalística.

Elemento essencial na actual conjuntura mediática é o rápido avanço da informação online e do seu impacto nas formas quer de divulgar quer de aceder à informação. Todos temos de estar atentos às novas realidades.

E é natural que os empresários, neste período de transição tecnológica, estejam preocupados com o futuro e interessados em debater a situação, nomeadamente tendo em conta a crise da imprensa devida à quebra da publicidade.

Mas a discussão que têm feito incide sobre a procura do que denominam "novo modelo de negócio". A expressão é significativa, revelando que para eles não é propriamente a informação do público, não são o jornalismo nem os jornalistas que estão em causa, mas sim o desejo de preservar os lucros (o que, só por si, é compreensível) e o poder de influência que a comunicação social proporciona.

A verdade, porém, é que a sobrevivência de uma verdadeira empresa de comunicação social, que não seja encarada como um negócio como qualquer outro, só será possível se os jornalistas tiverem condições materiais e concretas, mas também subjectivas, para o exercício das suas funções; se forem em número suficiente e suficientemente remunerados; se a sua dignidade e identidade profissionais forem respeitadas; se a deontologia não for vista como um empecilho mas como uma garantia de qualidade; se os mais velhos não forem considerados como um incómodo mas sim como um factor de preservação da memória e um precioso capital de experiência; se os mais novos deixarem de ser mera reserva de trabalho disponível para tudo, ou mão de obra barata, eternamente temporária e facilmente descartável.

Importância do Serviço Público

É em todo este contexto que nunca como hoje se tornou tão imperiosamente necessária a existência de uma comunicação social de Serviço Público (Rádio e Televisão de Portugal e Agência Lusa) que constitua uma referência, e também uma alternativa e até mesmo um antídoto aos grandes media privados.

Desvirtuar ou enfraquecer o S.P. - para já não falar do velho desejo da direita de privatizar a RTP e a Lusa -, por exemplo através de cortes no financiamento, levaria a que os critérios jornalísticos que presidem aos noticiários e outros programas informativos, a escolha dos comentadores e analistas, o lugar da informação na construção das grelhas e a orientação global destas, o investimento humano e logístico no jornalismo de investigação - tudo isto ficaria exclusivamente subordinado aos interesses económicos (e também políticos e ideológicos) que acabam sempre por ser determinantes no sector privado. Onde, indiscutivelmente, existem excelentes profissionais, incluindo jornalistas - sendo certo que o problema essencial não é de jornalistas e outros técnicos, mas sim de políticas editoriais e de estratégias de programação.

O cerne da questão reside no papel social dos media - na informação, na formação e no entretenimento -, nomeadamente da concepção que tenhamos acerca de qual é e qual deverá ser a sua intervenção na sociedade. Ninguém tem dúvidas de que essa intervenção na modelação das consciências e na formação das opiniões e dos comportamentos é hoje mais poderosa do que nunca. O novo presidente da República que o diga.

Mais de quatro décadas após Abril, revela-se intolerável pôr em causa conquistas como o Serviço Nacional de Saúde ou a Escola Pública. Mas exactamente o mesmo se pode e deve dizer do Serviço Público de Rádio e Televisão, assim como da agência Lusa.

Se é essencial e indispensável a garantia da saúde e do ensino para todos, não o é menos o direito de todos a uma comunicação social que na informação, na formação e no entretenimento se constitua como uma referência, uma alternativa aos operadores privados, e seja dotada dos meios materiais e humanos que lhe permitam, enquanto Serviço Público, ocupar o espaço de primeira linha que lhe compete na promoção da cidadania, da cultura, do desenvolvimento e da justiça social, no respeito pelo pluralismo, na defesa e no aprofundamento da democracia e da soberania nacional.

(Intervenção na abertura da Audição Pública sobre comunicação social promovida pelo Grupo Parlamentar do PCP, Assembleia da República, 3.5.2016).

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