O salário do medo

Nº 1723 - Primavera 2013
Publicado em Editorial por: Revista Seara Nova (autor)

"A adesão à União Europeia significou, politicamente, a alienação de parte substancial da nossa soberania"

 

 

"[A] desconsideração da vontade popular traduz-se no desprezo pela dignidade humana dos cidadãos, no empobrecimento generalizado das pessoas"

 

 

 

"São reais, e preocupantes, os riscos da deriva governamental de um Executivo sem norte, sem uma perspectiva de saída para a uma situação de crise que se agudiza a cada dia"

 

 

 

"Nenhum cidadão pode sentir-se legitimamente representado por alguém que conquistou o seu voto com um programa eleitoral que, vencidas as eleições, não só ignora como espezinha"

 

 

 

"A pobreza, a miséria, a tristeza, a negação de direitos humanos essenciais - porque é disso que falamos quando falamos do estado actual do País - esmagam a liberdade, geram o medo, são más conselheiras"

Decorridos trinta e sete anos sobre a data da sua aprovação (2 de Abril de 1976) e sete processos de revisão que, desde 1982, intentaram eliminar ou descaracterizar algumas das suas marcas fundamentais, a verdade é que a Constituição de Abril, logo no seu artigo 1.º, continua a definir Portugal como uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular. A política que vem sendo seguida pelo Governo PSD/PP põe em causa esses conceitos-chave do nosso viver colectivo: a soberania do país, a dignidade dos cidadãos, o respeito pela vontade popular.

A adesão à União Europeia (UE) significou, politicamente, a alienação de parte substancial da nossa soberania, alienação essa visível no modo como a Bandeira Nacional, um dos símbolos constitucionais da soberania da República, passou a ser oficialmente apresentada, agora sob a tutela do céu estrelado da Europa.

O modo como os sucessivos governos foram aceitando o carácter residual da soberania nacional, a submissão cega às imposições dos órgãos dirigentes da UE, seja através das famosas directivas a que tem que se subordinar a nossa legislação interna, seja através de uma autêntica governança de ocupação, como a que se verifica com a troika Fundo Monetário Internacional/Banco Central Europeu/Comissão Europeia - esse modo de desconsideração da vontade popular traduz-se no desprezo pela dignidade humana dos cidadãos, no empobrecimento generalizado das pessoas, cuja falta de perspectiva de uma vida minimamente decente está a empurrá-las para a emigração, a queda da natalidade, a falência, o suicídio, o desespero individual e colectivo. Desse desespero vêm dando sinal inequívoco as sucessivas manifestações populares, a eleição da "Grândola Vila Morena" como hino do descontentamento e de protesto, a recuperação de palavras de ordem da Revolução de Abril.

Perante a dimensão do protesto, com repercussão internacional, é manifesto que o Governo deixou de ter a legitimidade que obtivera no acto eleitoral em que apresentou ao eleitorado um programa que a sua política executiva defraudou em absoluto. São reais, e preocupantes, os riscos da deriva governamental de um Executivo sem norte, sem uma perspectiva de saída para a uma situação de crise que se agudiza a cada dia, sem respeito pelas mais elementares regras da democracia, constitucionalmente consagradas.

Se, como diz a canção-hino de José Afonso, "o povo é quem mais ordena", é difícil imaginar que os portugueses vivam hoje numa democracia representativa, e muito menos na democracia participativa e no Estado de direito democrático de que fala o artigo 2.º da Constituição. Nenhum cidadão pode sentir-se legitimamente representado por alguém que conquistou o seu voto com um programa eleitoral que, vencidas as eleições, não só ignora como espezinha, com uma prática oposta às suas promessas eleiçoeiras. Nenhum cidadão pode sentir-se legitimamente representado quando sente que, depositado o seu voto na urna, fica esgotado o seu ciclo de participação na gestão da coisa pública.

A pobreza, a miséria, a tristeza, a negação de direitos humanos essenciais - porque é disso que falamos quando falamos do estado actual do País - esmagam a liberdade, geram o medo, são más conselheiras. Porque também podem ser fonte de soluções antidemocráticas, que podemos suspeitar como começam mas não podemos saber como evoluem e terminam. Nesta matéria, infelizmente, experiência histórica não nos falta.

Pelos riscos e perigos da situação que se vive em Portugal, há que prestar atenção ao que se passa em países da Europa do Sul, integrantes também eles da UE, especialmente a Grécia, a Itália e a Espanha. Em particular, as recentes eleições gerais em Itália devem alertar-nos para os perigos que representam a demagogia, o populismo, a miragem de salvadores da Pátria, o controlo dos meios de comunicação de massas, tudo factores condicionantes da opinião pública e mobilizadores do eleitorado em sentidos que nada têm que ver com a Democracia entendida como governo do Povo, com o Povo e para o Povo.


É desesperante a situação em que Portugal se encontra.

São preocupantes os aspectos e indicadores financeiros, económicos, sociais, mas é limitativo confinar a tais planos a gravidade da situação actual do nosso País. No entanto são tais indicadores que em primeira análise dão a exacta medida das nefastas políticas que têm sido adoptadas e da fraca qualidade dos governantes que têm estado à frente dos destinos deste País, bem como das distorções do sistema económico em que estamos inseridos.

Dizemos que é limitativo, porque a degradação da sociedade portuguesa – e igualmente da europeia – é grave noutros planos, como o político, em que a democracia está restringida a aspectos formais, sempre mais limitados; como o cívico, onde o envolvimento das populações e dos cidadãos individualmente considerados nos destinos do País é cada vez menor, porque menos estimulado ou menos apoiado (caso do movimento associativo); como o cultural, onde apesar de muitas e interessantes manifestações, estas se destinam predominantemente a elites e os estímulos junto dos mais jovens são muito reduzidos; como o ético, com os exemplos pouco edificantes dos representantes dos poderes em casos de corrupção conhecidos ou suspeitados, com o desprestígio da justiça, provavelmente consequência principal de legislação inadequada, mas cuidadosamente elaborada para discreto benefício dos poderosos; e com os valores dominantes do sucesso individual sem olhar a meios, do individualismo exacerbado, da aceitação propagandeada de uma sociedade de injustiça e desigualdade social, temperada de uma caridadezinha quanto baste.

Haverá uma saída a curto / médio prazo?

Olhemos sucintamente os planos financeiro, económico e social: uma dívida externa elevada, pública, mas principalmente privada, com a banca descapitalizada (apesar das ajudas); um aparelho produtivo a ser extensa e servilmente destruído, desde o primeiro governo de Cavaco Silva; um mercado interno em retração, provavelmente cada vez mais acentuada dado o ataque aos direitos laborais e o crescimento do desemprego; a errada opção de privilegiar as exportações, constrangidas pela estagnação europeia; as dificuldades e ausência de apoios suficientes às pequenas e médias empresas, cujo peso é determinante no tecido produtivo do país; um desemprego descontrolado; a diminuição da parte dos salários no rendimento nacional; o nível muito baixo das reformas e o crescimento das manchas de pobreza.

A culminar tudo isto, uma política cega pela vulgaridade do neoliberalismo, sob a inadequação e malvadez das receitas da troika FMI/UE/BCE, condicionada pela inexperiência dos governantes e submetida às ordens das maiores potências europeias e a um patronato que ainda vegeta em ideias do século XIX.

Mas o descontentamento vai aumentando. Seria impensável que assim não fosse: a política em curso ofende as expectativas e os direitos de trabalhadores, de jovens e de idosos, dos estudantes, das forças de segurança e das forças militares, dos pequenos e médios empresários e de todos os sectores do funcionalismo público.

O que há de novo é que a resignação vai dando lugar à contestação e ao protesto.

Aí estão a comprová-lo as manifestações, concentrações, vigílias, abaixo-assinados e petições, vaias aos governantes e ao PR nas suas deslocações, contestação crescente na blogosfera. E acima de tudo a enorme manifestação sindical de 11 de Fevereiro, que no dizer da CGTP-IN transformou o Terreiro do Paço em “Terreiro da Luta” e a coragem desta em convocar uma greve geral para 22 de Março.

Esta luta alargada pode impor que a política nacional responda às reais necessidades do nosso País, na correcção dos desequilíbrios antes assinalados, em vez de estar subordinada à troika - instrumento do grande poder financeiro.

É isto possível na União Europeia e no espaço do euro?

A integração europeia sempre foi um projeto do grande capital europeu. Mas incorporou ideais democráticos e a defesa dos valores da liberdade, instituiu o modelo social europeu, inscreveu como seus princípios a coesão económica e social e a harmonização no progresso. Outros povos europeus – gregos, espanhóis, franceses, irlandeses, ingleses, belgas – lutam contra a actual política retrógrada imposta pela UE e respectivos governos. Os portugueses não estão sós na sua luta; e hão-de estar determinados a não seguir o caminho que nos esperará se continuarmos a deixar que aqui se reproduzam as selváticas medidas impostas ao povo grego.

Por cá, na Seara Nova, vamos dando o contributo possível na defesa dos valores democráticos, na promoção da cultura, na exigência de justiça social, na denúncia da política que não olha aos interesses do povo, tudo em respeito das tradições nobres desta revista de 90 anos.

Estamos a comemorar o 90.º Aniversário em justa homenagem aos que construíram e mantiveram esta revista, sempre num plano elevado que a colocam como uma referência da nossa democracia e da história portuguesa do século XX.

Dentro das comemorações “90 Anos Seara Nova” este é o terceiro número da revista que dá destaque ao 90.º Aniversário. Já realizámos duas Conferências Seara Nova, sob os temas “O Projecto Seara Nova” e “Leituras da Crise”, que foram assinaláveis êxitos, pela qualidade das intervenções dos oradores, pelo número de presenças e pela elevação dos debates. Inauguramos no Palácio Galveias, gentilmente cedido pela Câmara Municipal de Lisboa, a Exposição Itinerante que tem por título “90 Anos de Intervenção Cívica e Cultural”, onde se manterá até ao final de Abril.

Entre outras iniciativas, está em preparação a 3.ª Conferência, sobre Comunicação Social, prevista para finais de Maio e organiza-se a lista das entidades e locais por onde circulará a Exposição. Esperamos contar com a presença dos nossos assinantes e leitores.

Nestas ações temos o apoio de uma Comissão de Honra, identificada noutro local desta revista e o patrocínio institucional da Câmara Municipal de Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Casa Museu Abel Salazar, Fundação Mário Soares e Fundação José Saramago.

As comemorações do 90.º aniversário da Seara Nova têm igualmente servido para divulgar a revista e é com agrado que registamos o número crescente de visitas ao sítio da internet inaugurado no âmbito destas comemorações e os quase 2.000 amigos que nos seguem no facebook.

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